Descentralização do CRAI diminui espera na capital
Atendimento a crianças vítimas de violência no interior aumenta o conforto das famílias
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O ambiente lembra o de um consultório de pediatria: brinquedos, personagens infantis na parede, televisão ligada no canal de desenhos animados. Três meninas brincam com blocos de montar. Uma delas, com macacão vermelho e tênis de unicórnio, é chamada para a consulta. Mas o exame físico não busca sinais de gripe ou outra doença infantil. Em minutos, a constatação é bem mais dolorida. Com seis anos, ela teve o hímen rompido pelos dedos do padrasto. Era a confirmação das desconfianças da mãe, a auxiliar de serviços gerais Solange*. Em uma conversa reservada com a perita, ela relata os convites do companheiro para levar a menina para comprar balas, a teimosia em usar um cobertor quando a segurava no colo e as tentativas de depreciar o comportamento do enteado mais velho. Ela e a menina vieram encaminhadas pela Delegacia da Criança e do Adolescente. “Tinha medo que não acreditassem em mim, mas eu vi que eles queriam ouvir o que eu tinha para falar” afirmou a mãe.
A cena se desenrola numa das salas do CRAI, Centro de Referência em Atendimento Infantil, mantido pelo IGP- Instituto-Geral de Perícias, Secretaria de Segurança Pública e pela Prefeitura de Porto Alegre, e que funciona no 6o andar do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas. O primeiro passo é o acolhimento das vítimas e de seus cuidadores por uma equipe multidisciplinar. Psicólogos e assistentes sociais procuram identificar a possibilidade de mutilações ou suicídio, o que deve ser comunicado imediatamente aos serviços de saúde. Já a pediatria e a ginecologia verificam se há problemas de saúde que, se confirmados, são imediatamente encaminhados para outros serviços disponíveis no Hospital. Em casos de gravidez em função do estupro, o HPV oferece o serviço de aborto legal.
Depois da abordagem inicial, a vítima é encaminhada para as duas perícias realizadas pelo IGP. É aí que entra em cena a excelência dos profissionais do Instituto, quase todos especializados nas áreas de entrevistas investigativa e violência sexual. O protocolo utilizado para as conversas segue um padrão internacional, e tem supervisão da Universidade do Porto, em Portugal. Com ele, a riqueza de detalhes é maior, o que permite comprovar o abuso mesmo quando não há sinais físicos. Em cerca de 95% dos casos não há marcas visíveis de violação, mas a abordagem psíquica consegue comprovar o crime, evitando que o trauma deixe de ser investigado e tratado. O laudo elaborado no Crai é fundamental para a Polícia Civil ou Ministério Público Estadual solicitarem as medidas previstas em lei para esses casos e, assim, proteger a vítima.
O trabalho desenvolvido pelo Crai é referência nacional e internacional. Em abril de 2018, entrou em vigor a Lei 13.431/2017, a chamada Lei da Escuta Protegida, que prevê a implantação de um modelo semelhante em todo o Brasil. Os peritos do IGP participaram da elaboração da lei, e agora auxiliam os Ministérios da Justiça, da Saúde, Mulher na continuidade da política, e têm recebido consultas de Estados como Rio de Janeiro e Maranhão. Além disso, a cidade do Porto, em Portugal, também adota o modelo gaúcho.
EXPANSÃO – em outubro de 2018, o Crai começou o processo de expansão, para agilizar e humanizar o atendimento em locais distantes. Peritos psíquicos começaram a atender pacientes em oito cidades: Canoas, Caxias do Sul, Lajeado, Pelotas, Osório, Santana do Livramento, Santa Rosa e Santa Maria. De janeiro a abril deste ano, foram realizadas 427 perícias nesses municípios e 1132 em Porto Alegre. Além de evitar o desgaste de uma viagem até a capital, a descentralização diminuiu a fila de espera para atendimentos, que chegou a ser de seis meses. Entre janeiro e março de 2018, foram feitas 997 perícias psíquicas na capital, número que caiu para 837 no mesmo período deste ano - redução de 17%.
A perita Renata Cortez é uma das que se deslocam para o interior. Em Canoas e Osório o atendimento é semanal. Já nos outros Crais, uma vez por mês. Ela conta que o principal objetivo é evitar que as vítimas, que já sofreram por causa da violência, passem por novas situações difíceis durante a investigação. “A ideia do atendimento mais acolhedor é importante para evitar a revitimização dessas crianças. É uma maneira de reduzir danos e dar a certeza de que serão atendidas” afirma ela. Apesar de a violência sexual ser registrada em todas as camadas sociais, para as famílias de baixa renda a busca por Justiça era dificultada pela necessidade de viajar para Porto Alegre.“Uma viagem como essa, para famílias que já estão fragilizadas, é muito conturbada, principalmente se não há garantia de atendimento”, conclui.
O objetivo da direção do IGP é nomear novos concursados, que sejam fixados nestes municípios. A parceria com as Prefeituras pode possibilitar que os postos sejam transformados em Crai também no interior. Mais do que isso, a ideia é ampliar o atendimento, implantando também o Serviço Psicossocial e a Sala Lilás, para mulheres vítimas de violência. “Meninas de 18 anos que sofrem violência já não podem ser atendidas pelo Crai. Com o Projeto Acolher, a rede de proteção se estende a todas” explica Angelita Rios.
OUTROS ATENDIMENTOS - Quase todos os atendimentos são relativos à violência sexual contra crianças, mas, há dois anos, o Crai passou a atender também crianças que presenciaram crimes de feminicídio. Em alguns casos, os menores são levados para o 4o Regimento de Polícia Montada da Brigada Militar. Ali, enquanto relaxam com os cavalos, eles contam como viram suas mães serem mortas por maridos e companheiros, o que ajuda a esclarecer o crime. Em outra parceira, com a Polícia Federal, os peritos confrontam os vídeos com imagens feitas por pedófilos na internet com o depoimento das crianças.
*nome fictício